Nenhuma lágrima pelo Papa
- Redação
- há 3 horas
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Morreu nesta segunda, 21/04, Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco, chefe da Igreja Católica desde 2013. Expressão de uma profunda crise da instituição milenar a qual se dedicou toda a vida, seus atos só podem ser entendidos no interior deste contexto.
É certo que Francisco proferiu frequentes discursos em defesa dos pobres e contra as guerras de agressão mundo afora, bem como apelos para reformas dentro da Igreja. Nomeou mulheres para postos-chave e autorizou a benção a casais do mesmo sexo, levando os setores mais abertamente reacionários do catolicismo a condenar o seu pontificado. Isso, no entanto, não reverteu a cruzada anti-aborto que caracteriza a igreja católica, nem os escândalos de corrupção e pedofilia que seguem grassando no interior das seculares estruturas do Vaticano. Há apenas poucos dias, Francisco assinou a dissolução da irmandade Sodalício da Vida Cristã (SVC), fundada no Peru, na década de 1970, e acusada de uma série de graves crimes.
Na própria Argentina, Bergoglio foi acusado por diversas instituições de direitos humanos por sua conivência com o regime militar fascista (1976-1983), praticando cegueira deliberada frente aos abomináveis crimes cometidos por Videla e seus asseclas, inclusive contra sacerdotes que apoiavam a resistência popular. Seja como for, tenha Bergoglio, uma vez tornado Francisco, abraçado sinceramente ou não a crença em uma espécie de “reformismo católico”, seus discursos e as suas medidas significaram a busca da cúpula do Vaticano (cujo lastro de crimes e associação com o fascismo histórico é interminável) por recuperar uma legitimidade perdida pela sucessão de escândalos e pelo crescimento do protestantismo e sua conversão em fenômeno de massas na América Latina, maior bastião católico do mundo. É normal que aristocracias ameaçadas pela contestação externa e divisão interna façam apelos à concertação e ao diálogo, de modo a preservar a essência das estruturas que representam.
Além deste aspecto político-prático, há outro doutrinário. É certo que Francisco condenou as guerras no mundo e fez apelos ao cessar-fogo, inclusive na Faixa de Gaza, recentemente, mas os fez nos estritos limites do chamamento à “paz” e ao diálogo “entre todos”. Enquanto discursava em defesa dos pobres e pela paz mundial, abençoava notórios genocidas como Modi (que mantém a militarização da Caxemira e pratica o extermínio contra as bases vermelhas naxalitas), recebia Javier Milei para a reconciliação (após Milei dizer na campanha eleitoral que Francisco representava o “Maligno”) e teve como um dos seus últimos compromissos públicos a reunião com J.D.Vance, falcão da indústria armamentista e vice-presidente dos Estados Unidos. Na sua última mensagem pública, a da Páscoa do último domingo (20/04), disse Francisco, por exemplo:
“Apelo a todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para lutar pelos necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento. Estas são as ‘armas’ da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar a morte!”.
Oras, qualquer burguês concorda com semelhantes apelos genéricos à paz e ao desenvolvimento, porque mesmo os piores criminosos de guerra dizem agir em nome de tais valores. Em outro trecho, Francisco assim se referiu à situação na Faixa de Gaza:
“Sinto-me próximo dos cristãos que sofrem na Palestina e em Israel, bem como do povo israelita e palestiniano. É preocupante o crescente clima de antissemitismo que se está a espalhar pelo mundo. E, ao mesmo tempo, o meu pensamento dirige-se ao povo, em particular, à comunidade cristã de Gaza, onde o terrível conflito continua a gerar mortes e destruição e a provocar uma situação humanitária dramática e ignóbil. Apelo às partes beligerantes que cheguem a um cessar-fogo, que se libertem os reféns e se preste assistência à população faminta, desejosa de um futuro de paz.”
Como se vê, enxerga-se uma simetria entre explorados e exploradores que não existe nem pode existir na realidade. Naturalmente que não há um sinal de igualdade entre o sofrimento do povo palestino e o dos seus carrascos, fardados ou paramilitares, que praticam o assassinato e a desterritorialização em massa. A qual clima de antissemitismo Francisco se refere em seus discurso – àquele apontado pelos justificadores do holocausto palestino, que confundem a condenação da guerra de ocupação colonial com antissemistismo? Bençãos genéricas a opressores e oprimidos, tanto quanto condenações genéricas às armas que servem ao genocídio e às armas que resistem ao genocídio, no melhor dos casos não têm qualquer efeito prático ou, pior do que isso, semeiam ilusões e desarmam os espíritos de luta daqueles que precisam lutar pela sua sobrevivência.
É provável que o atual cenário mundial, de escalada do fascismo e de preparação para uma nova guerra de partilha imperialista (já em curso no Terceiro Mundo) torne inaceitável para os potentados católicos e aos complexos jogos de interesses de seus conclaves mesmo estes apelos abstratos ao “bem universal” proferidos por Francisco. Mas essa é uma pugna no seio da ordem, que não diz respeito aos povos, seja de que crença for, que combatem pela redenção histórico-mundana efetiva nos quatro cantos do mundo.